"Até ser Cristo formado em vós"

T. Austin-Sparks

 

Capítulo 1

Pedimos ao Senhor que nos ajude de modo que, nas coisas que iremos compartilhar, possamos considerar alguns dos temas mais vitais de nossa vida cristã. Em nosso Novo Testamento possuímos um certo número de documentos escritos. Dentre estes, há um que está relacionado com uma questão que talvez seja a mais vital que jamais surgiu em relação ao cristianismo. Em termos de tamanho, não se trata de um documento muito longo. Na verdade, é um dos menores. Contudo, num pequeno espaço, o autor concentrou a própria essência do cristianismo. Ele tomou sua pena para escrever este documento com uma intensa determinação de resolver esta grande questão. Por causa disso, ele concentrou num espaço limitado a própria essência do cristianismo. Penso que o apóstolo nunca escreveu nada sob um sentido de tão grande importância e necessidade. Esta carta vibra com a percepção de sua paixão sobre este assunto particular.

Uma grande questão havia surgido. Esta questão ameaçava destruir a verdadeira natureza do cristianismo. A questão era a seguinte: em que consiste esta coisa que invadiu o mundo na vinda de Jesus Cristo? Na vinda de Jesus Cristo a este mundo, Deus invadiu a história. Deus interviu na história para operar uma mudança tremenda em todas as coisas. Portanto, a grande questão era: o que foi isso que veio a este mundo com Jesus Cristo? Será que é apenas a continuação de um antigo sistema com algumas coisas a ele adicionadas? Será um sistema legal configurado à semelhança do judaísmo? Em outras palavras, será apenas a continuação do judaísmo com algo que lhe foi adicionado? Ou será que é algo inteiramente novo e vivo, uma ação espiritual vinda do céu? Será que a velha vestidura do judaísmo precisa apenas receber alguns remendos de pano novo? Ou será que a vestidura deve ser inteiramente nova? Será que os velhos odres do judaísmo devem ser enchidos com vinho novo? Ou será que deve haver um odre totalmente novo? Esta é a grande questão. A importância desta questão implicava numa enorme diferença. Tal diferença tornou-se um grande campo de batalha entre o velho e o novo.

Esta questão envolveu o cristianismo em grande confusão. Por algum tempo, quase todos os cristãos estavam num estado de incerteza sobre este assunto. Tal fato gerou divisões muito sérias dentre o povo do Senhor. Essa incerteza chegou a insinuar-se até mesmo entre os primeiros apóstolos. Pedro, o líder dos 12, experimentou um grande conflito a respeito disso. Numa ocasião, ele teve um confronto muito sério com o apóstolo Paulo sobre este tema. Tiago, que era um dos irmãos terrenos do Senhor, tinha grandes reservas sobre este assunto. Estêvão, o primeiro mártir cristão, morreu justamente por causa desta questão. Onde quer que o cristianismo chegasse, esta disputa vinha logo em seguida.

Nos dias em que vivemos, talvez seja difícil perceber a tremenda tensão que havia naquela época em relação à verdadeira natureza do cristianismo. Embora este documento particular ao qual nos referimos acima tenha realmente resolvido o assunto de forma ampla em sua época, a natureza desta controvérsia tem persistido até nossos próprios dias. Será que o cristianismo é um sistema legal ou é uma vida espiritual? Foi por causa desta questão que o Senhor ressurreto e assentado à destra do Pai abriu caminho através do céu e colocou Sua mão sobre o homem chamado Saulo de Tarso. Não era pouca coisa para o Senhor Jesus, que havia se assentado à destra da Majestade nos céus, levantar-se de Seu trono e vir a esta terra novamente. O Senhor deve ter percebido que havia um assunto muito sério envolvido nisso. Portanto, Ele não designou um anjo ou um arcanjo. Ele deixou Seu lugar na glória e desceu para encontrar aquele homem na estrada de Damasco. Ali o Senhor colocou sua mão sobre Saulo.

Paulo mais tarde descreveu o que lhe aconteceu dizendo ter sido "conquistado" por Cristo Jesus (Fp 3:12). Você sabe qual é o significado da palavra "conquistado"? Espero que você saiba o significado dessa palavra, ao menos no que se refere à lei. Um policial está procurando um determinado criminoso. Ao encontrá-lo, ele coloca firmemente suas mãos sobre o criminoso, prendendo-o. Foi essa palavra que o apóstolo utilizou. Ele disse: "Eu fui conquistado, eu fui aprisionado por Jesus Cristo". Tudo isso aconteceu com relação à questão específica que estamos considerando. O Senhor aprisionou Paulo como o instrumento por meio do qual Ele iria responder a esta questão. Isso mostra quão seriamente o Senhor considerava este assunto.

É impossível entender o ministério do apóstolo Paulo a menos que reconheçamos esta conexão particular. Todo o ministério do apóstolo Paulo está relacionado com um assunto: a natureza espiritual, celestial, do cristianismo. O próprio Paulo, por meio daquela poderosa intervenção celestial, conseguiu perceber a grande diferença. Ele entendeu que uma grande separação havia sido criada entre o velho judaísmo e o novo cristianismo, entre o antigo Israel terreno e o novo Israel celestial. Paulo percebeu que elas eram duas nações diferentes, distintas. Ele compreendeu que esta questão separava as eras. Aquilo que havia existido nas eras passadas estava agora terminado. Algo novo havia sido introduzido, para ser a natureza das coisas por todas as eras eternas. Quando o apóstolo Paulo percebeu a vasta diferença entre o legal e o espiritual, quando isso foi aberto sobre ele desde o céu, ele lançou-se nesta batalha disposto a dar até sua última gota de sangue.

A batalha começou logo que Paulo foi salvo. Após o Senhor tê-lo encontrado, ele entrou na cidade de Damasco. Tendo sido batizado e recebendo o Espírito Santo, ele passou a testificar-lhes que Jesus é o Cristo. Seus ouvintes entenderam o que isso significava em relação à pessoa de Paulo: ele havia mudado de terreno. Paulo havia deixado para trás o terreno do legalismo, do judaísmo, e assumido o terreno de Cristo. Neste momento, a batalha começou e Paulo teve que fugir da cidade. Ao longo dos trinta anos de sua vida com o Senhor, Paulo se encontrou nessa batalha em todos os lugares onde esteve. O último capítulo do livro de Atos, que nos mostra Paulo na prisão aguardando uma possível sentença de morte, revela que a batalha continuava, pois os judaizantes estavam com ele em suas cadeias. Paulo procura argumentar com eles, mas o resultado sempre é o mesmo: "Não há mais proveito nisso; agora devo voltar-me para os gentios". Esta batalha perdurou desde o início até o fim de sua vida. Tratava-se de uma batalha relacionada a um assunto crucial: o cristianismo é um sistema legal sobre a terra ou é uma ação espiritual do céu?

Desejo iniciar afirmando que existe um documento no Novo Testamento que estabelece a resposta para esta questão. Minha suspeita é que, a esta altura, muitos já tenham descoberto que documento é este. Se você ainda tem dúvidas, trata-se da epístola aos Gálatas. Muitos hoje crêem que esta epístola foi a primeira que Paulo escreveu. Quando eu era jovem, predominava o pensamento que as epístolas aos Tessalonicenses haviam sido as primeiras que Paulo havia escrito, e eu assim afirmei muitas vezes. Estudos posteriores levaram aqueles que são profundos conhecedores da Palavra a concluir que a epístola aos Gálatas foi provavelmente a primeira escrita por Paulo. Contudo, não pretendo discutir este tema nesta oportunidade. Você pode aceitar essa conclusão ou então deixá-la de lado. Entretanto, se isso for verdade, o fato de que este tenha sido o primeiro grande tema sobre o qual o apóstolo escreveu adquire grande significado. Se você ler esta carta e sentir a energia com a qual Paulo a redigiu, poderá discernir quão seriamente ele considerava esta questão. Ele percebeu que nela havia algo que estava ameaçando toda a natureza do cristianismo. Desde então, ele se dedicou a realizar esta obra, que consiste em preservar a natureza puramente espiritual daquilo que havia vindo com Jesus Cristo.

Seguiremos adiante para considerar o conteúdo desta carta, procurando entrar nela com progressiva profundidade. Contudo, antes de fazermos isso, existem duas coisas que necessitam receber nossa atenção. Primeiramente, precisamos considerar o que o próprio apóstolo quis dizer com esta carta. A resposta disso está no versículo 8 do primeiro capítulo: "Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema".

Toda a epístola é reunida em uma única expressão: "O evangelho que temos pregado". Paulo diz que o tema do qual está tratando é a natureza do evangelho. Ele afirma: "O evangelho...que vos temos pregado". Portanto, esta carta é uma reafirmação do evangelho.

Vários nomes tem sido dados para aquilo que está contido no Novo Testamento. Muitos chamam isso de "cristianismo", que é um termo bastante abrangente. Outros o chamam de "fé cristã" ou "religião cristã". Nenhum destes termos é usado no Novo Testamento. Jamais o conteúdo do Novo Testamento é por ele definido como "cristianismo", "fé cristã" ou "religião cristã". Apenas um nome é utilizado para esta definição. Tudo aquilo que está contido no Novo Testamento e que veio com Jesus Cristo é simplesmente chamado de "evangelho".

Neste ponto surge algo que devemos considerar com atenção. Temos o costume de fazer uma distinção entre aquilo que chamamos de "o evangelho" e o ensino mais amplo para os crentes. Para muitos, o evangelho é aquilo que se dirige aos que ainda não foram salvos. Quanto ao que fornecemos aos que já são salvos, trata-se de uma outra coisa. Portanto, você deverá promover algumas reuniões para a pregação do evangelho no fim-de-semana. Estas reuniões não são para os crentes, mas para os que não foram salvos. Trata-se de uma distinção totalmente artificial. Tudo que está no Novo Testamento, seja para os salvos e para os não-salvos, é chamado de "evangelho". Não se trata de uma religião. Não se trata de uma filosofia de vida. Não é um sistema de verdades e práticas. Trata-se apenas do evangelho. Esta palavra significa "boas novas". Várias conexões são dadas a esta palavra, tal como "o evangelho da vossa salvação". Entretanto, existe algo abrangente e inclusivo sobre esta palavra, que consiste no evangelho de Deus com respeito a Seu Filho Jesus Cristo. Será que você percebe o que fazemos quando separamos o evangelho para os incrédulos e aquela outra instrução para os crentes? Nós abandonamos o terreno cujo fundamento é o Filho de Deus e entramos em um outro território destinado aos cristãos.

O evangelho abrange tudo aquilo que está em Cristo. Você nunca alcançará o lugar onde cessará de descobrir algo novo relacionado ao Filho de Deus. Contudo, ainda que possamos continuar descobrindo mais de Cristo por toda a eternidade, tudo ainda será o evangelho. Você pensa que o evangelho termina quando você nasce de novo? Você pensa que o evangelho termina quando você deixa este mundo e vai para o Senhor? Se você observar a grande multidão que homem algum pode enumerar ao redor do trono de Deus, e ouvir aquilo que eles cantam, perceberá que é um hino sobre o evangelho, que proclama: "Digno é o Cordeiro". Todos estes que cantam chegaram a uma compreensão absolutamente plena do Filho de Deus. Portanto, note bem: o evangelho é a boa nova de Deus com respeito a Seu Filho por todos os tempos e por toda a eternidade. O evangelho é algo infinitamente maior que a salvação do pecado e o livramento do juízo e da morte.

O evangelho abrange tudo que está em Cristo. Foi por este evangelho que o apóstolo estava lutando. Não era apenas pela salvação destas pessoas, mas para que eles pudessem entender tudo que estava compreendido na salvação em que haviam entrado. Este é o campo de batalha de Paulo. Ele diz: "O evangelho que vos temos pregado". O que isso significa? Uma epístola inteira é concentrada numa única expressão. O evangelho é a emancipação de toda escravidão legal. Ele consiste na emancipação para a liberdade dos filhos de Deus. Este é o tema da epístola: emancipação de toda escravidão legal para a entrada na liberdade dos filhos de Deus. Paulo então diz: "Este é o evangelho que vos temos pregado".

Creio que alguns de vocês leram a história da guerra civil americana. Vocês sabem que toda a nação se dividiu em duas partes por causa de um único assunto. Milhões de vidas foram sacrificadas por causa dessa única questão.Tratava-se da emancipação dos negros que estavam sob escravidão. Essa questão foi decidida em batalhas, com um custo muito alto. Finalmente, o lado que defendia a libertação dos escravos venceu e com isso, foi proclamada a liberdade para todos eles. Aqueles escravos que haviam passado suas vidas em terrível escravidão mal sabiam o que fazer com a liberdade que haviam recebido. Era algo tão maravilhoso que eles mal podiam acreditar. Eles se perguntavam se era realmente verdade que haviam sido libertos. Agora eles não mais precisavam temer os feitores, nem seus chicotes, pois eram livres. A coisa mais maravilhosa em suas vidas foi aquele grande dia quando a proclamação foi feita: "os escravos são livres". Maldito seria aquele que tentasse trazê-los de novo à escravidão.

Quando você se aproxima dos Estados Unidos pelo oceano, entrando pelo rio que conduz à grande cidade de Nova Iorque, passará pela famosa estátua da Liberdade. É um monumento muito alto, onde a figura da liberdade como que estende sua mão sobre toda a nação norte-americana. Esta é a magna carta, o decreto de isenção que o apóstolo Paulo escreveu na epístola aos Gálatas.

Durante as grandes guerras napoleônicas, quando o exército francês invadiu a Rússia, parecia que Napoleão iria devastar aquele país. Por longos e longos meses o confronto assolou a Rússia. A questão era muito séria. Porventura aquele país seria esmagado sob o calcanhar de Napoleão? Poderia a Rússia ser salva? Houve um dia em que um general dirigiu-se ao comandante-em-chefe das forças russas. Aquele comandante era agora um homem envelhecido que sofrera grande desgaste na longa guerra. Naquele dia, o general chegou e disse-lhe: "Napoleão está batendo em retirada. O exército francês deu meia-volta e está deixando nosso país." O velho comandante ficou em silêncio. Em seguida, ele reclinou sua cabeça e, enquanto lágrimas corriam por sua face, disse: "Graças a Deus, a Rússia está salva. A batalha está terminada".

Tanto a guerra civil americana como a campanha russa são coisas pequenas se comparadas com a questão que estamos discutindo. O grande tema da liberdade do povo de Deus é algo muito maior do que qualquer escravidão terrena.

Nesta epístola, Paulo chama o legalismo de jugo de escravidão. Ele clama: Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão. (Gl 5:1b). Quando ele usou a palavra "jugo", estava empregando a mesma palavra que o próprio Jesus havia utilizado. Jesus olhou para a multidão e disse: Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve (Mt 11:29,30). Jesus estava falando às multidões que estavam sob jugo do legalismo judeu. Ele disse que estar sob aquele jugo era estar cansado e sobrecarregado. Ele afirmou que Seu jugo era suave. Por meio disso, Ele estava dizendo o seguinte: "Eu vou libertá-los do jugo da escravidão judaica. Eu vou libertá-los de toda esta canseira sob o legalismo".

Os escribas e fariseus tinham milhares de interpretações para as Escrituras do Antigo Testamento. Eles tomaram a lei de Moisés e colocaram 2.000 interpretações em cima de cada lei. Cada coisa que Deus disse eles interpretaram criando milhares de coisas diferentes. O resultado disso foi que eles tomaram a Palavra de Deus e produziram uma interpretação que tornou-se um fardo a ser carregado. Deus havia dito: "Não farás tal coisa". Então os escribas e fariseus disseram: "Deus quis dizer que não farás tal coisa, mas que também não farás aquela outra coisa e ainda milhares de outras coisas". Moisés havia dito que eles deveriam fazer uma determinada coisa. Contudo, os escribas e fariseus diziam que isso implicava em fazer milhares de coisas. Jesus disse que eles juntavam pesados fardos e os colocavam sobre os ombros dos homens. Este sempre é o resultado do legalismo. Quando você está sob um sistema legal, você não sabe o que pode fazer. Você fica sempre perguntando: "Será que eu posso fazer isso? Se eu fizer isso, será que algum juízo não cairá sobre mim? E se eu não fizer isso numa determinada forma, será que cairei no juízo de Deus?"

Assim estavam as coisas naquela época. O próprio Paulo tinha estado debaixo daquele fardo. Ele nos fala sobre isso no capítulo sete da epístola aos Romanos. Paulo termina aquela terrível história com uma afirmação: "Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?" Todo aquele sistema é um sistema de morte. Contudo, ele acrescenta: "Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. Eu encontrei nEle todas as coisas." Esta é a batalha desta carta aos Gálatas. Isso é o que Paulo chama de evangelho. Aquele que corre, leia; e aquele que lê, corra. Corra para fora de qualquer coisa dessa natureza e para dentro da liberdade na qual Cristo nos libertou.

Até este ponto apenas introduzimos a grande questão. Tal questão se refere à verdadeira natureza do cristianismo, ou seja, daquilo que veio ao mundo com Jesus Cristo. O que apresentamos até agora não deve ser tomado como o todo, pois é apenas o início. Ainda precisamos ver em que consiste termos sido colocados em Cristo. De forma geral, realmente estamos na liberdade. Contudo, precisamos entender o significado disso. Isso quer dizer que vocês não devem ficar satisfeitos com o que foi dito até agora. Guardem tudo em seus corações e pensem que ainda há algo mais que precisamos aprender sobre este assunto. Trata-se de um glorioso evangelho, o evangelho de nossa liberdade em Cristo. Portanto, nós recusamos ser levados de volta à escravidão por qualquer homem.

 

Capítulo 2

Já avançamos bastante na abordagem de nosso assunto e não podemos retomar tudo de novo. Gostaria apenas de relembrar o assunto com o qual nos temos ocupado nesta oportunidade. Já afirmamos que este assunto tem sido a mais vital das questões na história do cristianismo. Trata-se de fazer a seguinte pergunta: o que é o verdadeiro cristianismo? Em que consiste aquilo que invadiu o mundo na vinda de Jesus Cristo?

Uma imensa batalha foi travada em relação a esta questão na época dos apóstolos. Hoje em dia, no que tange à natureza desta questão, a batalha continua. Ela assumiu uma forma peculiar no tempo dos apóstolos. Naquele momento, a questão era: judaísmo ou cristianismo? Depois daquela época, a questão deixou de ser entre judaísmo e cristianismo, mas ao longo da história e até hoje, tudo permanece igual em termos de princípio. A questão é a seguinte: o cristianismo é um sistema legal ou é uma ação espiritual do céu?

Já vimos que a batalha e a questão que a suscitou foram concentradas pelo apóstolo Paulo em sua breve carta aos Gálatas. Por sua vez, esta carta está concentrada em uma única expressão que o apóstolo emprega no início: "O evangelho que vos temos pregado" (Gl 1:8). Também vimos que a palavra "evangelho" não se refere a algo destinado apenas aos não-salvos. Esta palavra compreende tudo que está no Novo Testamento. Este é o primeiro aspecto básico que precisamos entender: o significado abrangente do evangelho. Ele não trata apenas de boas-novas para o mundo e para os não-salvos, mas também de boas-novas de Deus com relação a Seu Filho para o povo de Deus. Portanto, nós dedicamos algum tempo tratando da natureza do evangelho.

Também havíamos mencionado que havia um segundo aspecto básico que precisamos observar antes de estudar o conteúdo da epístola aos Gálatas. Esta carta está profundamente enraizada neste aspecto particular, que diz respeito ao próprio Paulo e a base de seu apostolado. Eu ficaria muito satisfeito de saber que esta carta está bem viva em suas mentes. Eu também ficaria muito satisfeito de saber que, após termos passado pela primeira sessão, vocês tenham sido encorajados a ler toda a carta novamente. Quero sugerir que vocês leiam esta carta diariamente, enquanto estivermos tratando desse assunto. Creio que isso vai ajudar-nos bastante.

Se você está bem familiarizado com a epístola aos Gálatas, certamente já notou o papel de destaque que o apóstolo Paulo assume nela. Ele fala muito sobre si mesmo e sobre seu apostolado. Existe um sentimento de que há um homem por trás da carta. Isso significa que há um homem por trás do evangelho. A expressão pessoal do apóstolo adquire uma dimensão muito grande. Contudo, há um propósito para isso, que certamente não é Paulo buscando glória para si mesmo. O propósito não é magnificar a Paulo, mas magnificar a Jesus Cristo. Isso é comprovado pelo fato de que, numa carta tão breve, o nome "Cristo" ocorre 43 vezes. Voltaremos a esse ponto mais tarde, pois agora o mencionamos com a única intenção de colocar Paulo em segundo plano e deixar Jesus Cristo à frente.

A razão para o destaque dado ao apóstolo nesta epístola é justamente a questão da grande mudança que estava sendo operada em seu tempo. Essa tremenda mudança no plano histórico e espiritual em todas as eras estava concentrando-se sobre esse homem, Paulo. Não era seu desejo que fosse assim. Ele certamente preferiria que isso ocorresse de outro modo. Paulo não queria ser a figura de destaque nesta controvérsia. Contudo, seus oponentes acabaram por fazê-lo a figura central da discussão. Eles diziam que Paulo não tinha o direito de pregar aquilo que estava pregando. Eles colocavam Paulo em oposição a Moisés e Moisés em oposição a Paulo. Eles estavam dizendo que Deus sempre se referira a Moisés como "meu servo". Isso implicava que, segundo as Escrituras, Moisés era o servo aprovado do Senhor. Nessa condição, Moisés trouxe todo o sistema do Antigo Testamento. Ele foi o autor do sistema da lei. Além disso, ele registrou as Escrituras enquanto Deus lhe ditava, ou seja, Deus disse verbalmente a Moisés o que escrever. Portanto, o Antigo Testamento foi inspirado verbalmente por Deus. Isso significa que o sistema judeu foi inspirado por Deus. Por meio de Moisés, Deus nos deu o grande sistema de adoração que temos no livro de Levítico.

Todos estes pontos nos permitem ver que os oponentes de Paulo pareciam ter argumentos muito fortes contra ele. Eles diziam que Paulo negava tudo isso. E Paulo de fato disse que tudo isso estava acabado. Tomemos como exemplo a questão da circuncisão, a qual eles enfatizavam. Segundo os oponentes de Paulo, a circuncisão é muito importante, tendo sido estabelecida por Deus e fundamentada no relato inspirado do Antigo Testamento. Segundo eles, a Bíblia dizia que a circuncisão tinha grande valor. Mas este homem chamado Paulo deliberadamente diz: "a circuncisão não tem valor algum". Então eles concluíam que Paulo estava contradizendo as Escrituras e provando que não acreditava na sua inspiração.

Os oponentes de Paulo não pararam neste ponto, mas foram mais longe. Eles não apenas atacaram seu ensino, mas também o atacaram pessoalmente. Você sabe que numa causa maldosa sempre há uma arma maldosa. Sempre que há uma causa maldosa, logo surgem os ataques pessoais. Deixa-se de atacar o que a pessoa ensina para atacar a própria pessoa, com o fim de desacreditá-la. Foi isso que os oponentes de Paulo fizeram, dizendo que ele não era um verdadeiro apóstolo. O máximo admissível é que ele era um apóstolo inferior aos outros apóstolos. Eles também disseram que Paulo era um falso mestre, que sua doutrina não era íntegra e que ele era um homem perigoso. Dessa maneira, eles tentaram minar o ministério de Paulo.

Por meio disso você pode ver quão proeminente era o lugar que Paulo ocupava nessa grande discussão histórica e espiritual quanto à verdadeira natureza do cristianismo. O fato de que os poderosos oponentes de Paulo dirigiram o foco de atenção sobre sua pessoa acabou por extrair de Paulo um testemunho pessoal. É neste testemunho que encontramos a própria essência do cristianismo. Nele encontramos o vinho novo que romperá com os odres velhos. Aqui temos a vestidura nova que Paulo não tentará remendar. Em seu testemunho, temos aquilo que constitui a nova era na qual vivemos.

Diga-se de passagem que devemos agradecer muito aos inimigos de Paulo. Temos que agradecer a estes inimigos pela grande luz que emergiu dos sofrimentos do apóstolo. Temos que agradecer a estes inimigos pela grande emancipação do cristianismo de um sistema legal e morto. Deus transformou a perseguição de Paulo em um ganho maravilhoso para toda esta dispensação. As coisas frequentemente acontecem assim: Deus obtém o vinho puro no lagar. Naquele lugar, as uvas tem que ser esmagadas e partidas. À partir disso, o vinho puro do reino fluirá. Foi assim que aconteceu no caso de Paulo.

É preciso entender claramente que a batalha não era entre Paulo e os judeus, mas entre a tradição e a espiritualidade. Paulo somente entrou neste combate porque percebeu a diferença e passou a falar sobre aquilo que tinha visto. Desse modo, podemos entender a resposta pessoal de Paulo aos gálatas.

Antes de irmos adiante, preciso adicionar algo que é muito importante para fechar este aspecto do grande assunto que estamos considerando. Será que o apóstolo Paulo foi um vaso especialmente escolhido para este propósito? Será que ele tem uma posição particular em relação à presente dispensação? Desde aqueles dias, Paulo tem sido alvo de violentos ataques. Teólogos modernistas e liberais tem atacado Paulo, afirmando que ele não é um verdadeiro intérprete de Cristo. Dentre todos os homens na Bíblia, não há personalidade mais controversa do que o apóstolo Paulo. Mesmo aqueles que aceitariam a Jesus com restrições, não aceitariam a Paulo de modo algum. Portanto, temos que resolver essa questão: qual é a relação deste homem para com toda a presente dispensação?

Enquanto não pudermos responder com clareza esta pergunta, não poderemos entender o ministério de Paulo. Afinal de contas, todo o seu ministério converge nesse único tema: a natureza espiritual e celestial na nova dispensação que foi introduzida com Jesus Cristo. Portanto, precisamos considerar o apostolado de Paulo. Mas lembremo-nos de que, ao fazer isso, estaremos pensando em nosso tema principal, que consiste na natureza espiritual e celestial da presente dispensação. Os princípios do apostolado de Paulo constituem o real fundamento da dispensação em que vivemos.

Vejamos o que nos dizem dois trechos da epístola aos Gálatas:

"Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo" (Gl. 1:11-12).

"E, quanto àqueles que pareciam ser de maior influência (quais tenham sido, outrora, não me interessa; Deus não aceita a aparência do homem), esses, digo, que me pareciam ser alguma coisa nada me acrescentaram" (Gl. 2:6).

Estes dois trechos resolvem a questão acima referida. Qual é a origem do apostolado de Paulo? "Não segundo homens, nem recebido por meio de um homem. Nada recebi de homens, mas mediante revelação de Jesus Cristo." Qual é o significado destas afirmações?

Ao chegarmos nesse ponto, necessito fazer um pedido. Estamos tratando deste assunto e talvez você considere que estou fornecendo algum ensino. Talvez você lembre deste tema que estamos tratando no futuro como um ensino sobre um assunto especial. Evidentemente, existe ensino no que estamos compartilhando, e este ensino está focalizado num assunto específico. Contudo, gostaria de dizer-lhe enfaticamente que as coisas que estou dizendo não são um código de verdades, mas sim um testemunho de nosso fundamento. Trata-se de um teste quanto ao fundamento no qual você está individualmente firmado. Portanto, não se trata de termos uma série de mensagens para recebermos ensino, mas de um desafio vital para nossa posição espiritual. Afirmamos anteriormente que, num certo sentido, toda a presente dispensação está focalizada na experiência espiritual do apóstolo Paulo. Isso acontece com ele de uma forma tão plena como em nenhum outro caso, a não ser o próprio Senhor Jesus. Se isso que afirmamos é verdade, então aquilo que dissermos sobre o apostolado de Paulo é fundamental para nossas próprias vidas espirituais.

Que significado tem para nós a origem do apostolado de Paulo? Ela significa que a realidade básica da presente dispensação é um encontro pessoal e direto com Jesus Cristo. Preciso repetir essa afirmação, pois é um ponto de fundamental importância do qual todas as demais coisas virão. A realidade básica da dispensação na qual vivemos é um encontro pessoal e direto com Jesus Cristo. Trata-se de algo entre a pessoa de Cristo e nós, pessoalmente. É algo direto, pois não se dá por meio de um homem, nem por meio de um sacerdote ou qualquer outro tipo de intermediário. Não ocorre por meio de um ritual, nem por meio de um sistema ou por meio do homem. É algo direto entre Cristo e nós. Fracassaremos para com o propósito desta dispensação se não formos capazes de dizer: "Foi assim que aconteceu conosco". O método pelo qual Paulo teve sua experiência e nós tivemos a nossa pode ser diferente, mas cada um de nós deve ser capaz de dizer individualmente: "Eu encontrei a Jesus Cristo e Jesus Cristo me encontrou diretamente. Homens podem ter ajudado, mas eu não recebi tal coisa de homens. Não o recebi nem mesmo daqueles grandes homens que estavam em Jerusalém. Não o recebi dos grandes expoentes do cristianismo. Eu o recebi de forma direta e pessoal do próprio Senhor."

Isso é algo muito penetrante, que não deixará de expor a nossa condição. À partir disso, algumas questões surgem. Como foi que nós obtivemos aquilo que temos? Você está preparado para meditar sobre essa pergunta? Como foi que eu obtive o meu cristianismo? Como foi que alcancei aquilo que tenho hoje? Como foi que isto veio até mim? Será que eu o obtive pelo meu raciocínio? Pensei sobre este assunto da vida cristã, chegando a uma conclusão intelectual que, comparada com todas as outras coisas que conhecia, pareceu ser a melhor opção. Então decidi em minha mente que o cristianismo era a alternativa correta. Será que foi apenas uma conclusão intelectual? Será que foi assim comigo? Será este o fundamento sobre o qual estou apoiado?

Será que a vida cristã que tenho veio a mim por meio de uma personalidade forte? Posso ter conhecido algum mestre ou algum líder dotado de uma personalidade muito forte e ter ficado sob o impacto daquela personalidade. Nesse caso, eu teria recebido meu cristianismo por meio da personalidade forte do homem. Será que este é o fundamento sobre o qual você está firmado? Será que ele veio por meio da persuasão de outras pessoas? Elas me disseram que eu deveria achegar-me a Cristo e insistiram nisso até que, um dia, eu deixei-me levar pela persuasão deles. Portanto, eu passei a professar o cristianismo, fui batizado e este é o fundamento no qual estou firmado.

Como obtivemos aquilo que temos? Isso vai decidir todas as coisas no futuro. Mais cedo ou mais tarde, as pressões da vida se lançarão sobre a nossa posição. O Senhor permitirá que a posição que assumimos seja testada em meio ao fogo. Seu objetivo ao fazer isso é identificar com precisão o fundamento no qual estamos apoiados. Portanto, Paulo disse: "Eu não o recebi de homens, nem de um homem em especial. Pedro pode ter sido um homem muito importante, mas eu não o recebi dele. Tiago pode ter sido o irmão do Senhor na carne, e ele O conhecia muito bem, mas o que tenho não recebi dele. João foi um discípulo marcado por sua devoção e amor, além de ter sido um dos três primeiros discípulos, mas eu também não obtive o que tenho dele. Estes homens nada me acrescentaram, pois eu recebi por revelação direta de Jesus Cristo." Esta é a base da presente dispensação. Esta é a base do verdadeiro cristianismo espiritual. Esta é a grande marca que distingue um sistema legal de uma vida espiritual.

Seguindo adiante, temos que considerar a crise que se desenrolava por trás do apostolado de Paulo. Queremos permanecer no âmbito da epístola aos Gálatas e, nesse momento específico, queremos permanecer na esfera do testemunho de Paulo, pois seu testemunho é a base do que estamos considerando. Por trás do apostolado de Paulo ocorria uma crise tremenda. Vejamos Gálatas 1:13: "Porque ouvistes qual foi o meu proceder outrora no judaísmo, como sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus e a devastava".

Você precisa pronunciar isso com bastante ênfase, pois foi assim que Paulo o disse. Imagine Paulo dizendo esse tipo de coisa: "meu proceder no judaísmo"! Paulo era judeu de nascimento, havendo sido criado e guardado no judaísmo. Eu gostaria de contemplar sua expressão facial quando ele disse: "no judaísmo" ou seja, "na religião dos judeus". Isso descreve como Paulo vivia no passado. O que ele diz em seguida? "Eu sobremaneira perseguia o cristianismo?" "Eu perseguia a religião cristã?" Não! Ele diz o seguinte: "Eu perseguia a igreja de Deus e a devastava; no judaísmo, eu progredira mais do que muitos de meus conterrâneos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais". É necessário que você ponha suficiente ênfase sobre tudo isso e perceba o que todas estas coisas significavam para Paulo, ou Saulo de Tarso, como era antes conhecido. Caso contrário, você não terá condições de avaliar a tremenda crise que ocorreu em sua vida e que estava por trás de seu apostolado.

Veja bem: o que ocorrera era uma crise, e não um desenvolvimento. Tratava-se de uma crise, e não de uma evolução. Foi algo súbito que aconteceu num momento específico. Houve uma crise na vida deste homem. Esta crise resultou na divisão de toda a sua vida entre o que ficara no passado e o que estava no futuro. Para ele, isso significava o término de todo um sistema e o princípio de um nova ordem totalmente celestial. Retornaremos a este ponto mais adiante.

O próximo aspecto a ressaltar relaciona-se com algo que já abordamos: o ato soberano de Deus. Jesus Cristo levantou-se de Seu trono na glória e veio diretamente encontrar-se com este homem. Portanto, foi uma ação soberana do céu. No entanto, ao mesmo tempo, havia algo sobre o qual Deus podia operar. Havia algo nesse homem que forneceu ao Senhor a base para atuar. Não se tratava de mérito, mas havia algo naquele homem. De que se tratava? Peço que todos prestem muita atenção nisso: Deus encontrou um lugar para operar neste homem porque ele era um homem que levava Deus a sério.

Você deve lembrar que embora Saulo de Tarso estivesse fazendo a coisa errada, ele o fazia de acordo com a luz de sua consciência. Posteriormente, ele afirmou que fez isso em ignorância, pensando que estava servindo a Deus. Embora sua mente estivesse em trevas e sua conduta fosse equivocada, ele era um homem que levava Deus a sério. Em sua ignorância, ele fazia aquilo para Deus. Ele pensava que aquilo era o que Deus desejava. Em um sentido, Saulo tinha um coração por Deus, e nisso não havia erro algum. Seu zelo, como ele mesmo o descreve, era muito grande por aquilo que ele acreditava ser para o Senhor. Portanto, havia uma base sobre a qual Deus podia operar.

Guarde bem isso: aqueles que são indiferentes e não se importam muito nunca irão longe com o Senhor. Se as coisas não são muito importantes para nós, o Senhor também não se importa muito. Existe um versiculo no Antigo Testamento que diz: "Para com o benigno, benigno te mostras; com o íntegro, também íntegro. Com o puro, puro te mostras; com o perverso, inflexível" (Salmo 18:25-26). Deus será para nós aquilo que nós somos para Ele. Se somos indiferentes, se não nos importamos muito, se somos descuidados, o Senhor não virá a nós do modo como veio a Paulo.

Se você observar aqueles homens e mulheres que tiveram grande valor diante de Deus, notará que no início de sua caminhada houve uma crise muito séria. Algumas dessas pessoas passaram por dias, semanas e meses de dores de parto espirituais até o término da crise. Eles choraram diante de Deus dia e noite, mas parecia que Deus não estava percebendo nada. Chegou o momento em que aquilo tornou-se uma agonia absoluta, de modo que eles chegaram ao ponto de preferir a morte do que estar sem a presença de Deus. O que o Senhor estava fazendo por meio disso? Ele estava obtendo a base da realidade. Ele estava testando estas pessoas para saber se elas O queriam apenas para seu próprio benefício e satisfação ou se O queriam por causa de Sua própria pessoa.

Um jovem muito rico veio a Jesus e disse-lhe: "Bom mestre, que posso fazer para herdar a vida eterna"? A impressão que recebemos é como se Jesus fizesse um jogo com ele. Primeiramente, Ele disse: "Por que me chamas bom? Só há um que é bom, o qual é Deus. Há um teste muito real na afirmação que você fez. Você percebe que Eu sou Deus? Você está me colocando no mesmo plano que Deus? Só há um bom, o qual é Deus". Então o Senhor prosseguiu: "Você sabe o que está escrito na lei: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e amarás o teu próximo como a ti mesmo". Com essa pergunta, o Senhor está buscando expor o interior desse jovem. Ele responde: "Tudo isso tenho observado desde a minha juventude". Muito bem, uma vez que o jovem disse isso, veremos sua resposta ser submetida ao teste imediatamente. "Vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me. Venha e siga-me sem trazer coisa alguma. Siga-me sem um centavo no bolso e sem reputação. Será que a vida eterna é mais importante do que tudo o que você pode ter neste mundo?" Aqui você nota que o Senhor havia achado o ponto específico. A pergunta foi: "O que devo fazer para alcançar a vida eterna?" A resposta do Senhor foi: "Por que você quer a vida eterna? Será que ela é mais importante para você do que todas as coisas desse mundo? Você está preparado para deixar todas as coisas desse mundo para trás pela vida eterna?" O jovem baixou sua cabeça, soltou os braços, deu meia-volta e silenciosamente retirou-se. Você percebe qual é o ponto principal nessa situação? O Senhor deseja saber se nós realmente o levamos a sério.

Não alcançaremos nada a menos que levemos Deus realmente a sério. Pode ser que estejamos errados em nossa maneira de viver. Pode ser que nossas mentes estejam em densas trevas mas, ainda assim, podemos estar mostrando que levamos a sério o nosso Deus. O encontro com Saulo foi um ato soberano de Deus, mas o Senhor tinha uma base em sua vida no qual Ele podia operar. O zelo de Saulo, embora desorientado, tinha significado para Deus. Qual é nossa atitude para com o Senhor e para com as coisas do Senhor? Será que estamos com o coração dividido nesse assunto? Será que estamos sonolentos? Ou será que estamos indo adiante com força total, dizendo: "Irei alcançar aquilo que o Senhor quer para mim. Não importa o quanto isso me custe, meu coração está colocado naquilo que o Senhor quer para minha vida." Essa é a crise que há por trás de Paulo.

 

Capítulo 3

Continuaremos nossas considerações da grande questão fundamental relacionada a verdadeira natureza desta dispensação. O cristianismo é um sistema legal ou uma ação espiritual do céu? Já vimos que esta questão tornou-se um intenso campo de batalha desde o princípio. Foi por causa desta questão que Estêvão foi martirizado. Seu grande sucessor, o apóstolo Paulo, tornou-se o ponto focal desta batalha. Portanto, estamos com a epístola aos Gálatas aberta diante de nós, buscando ver aquilo que o apóstolo tem a dizer-nos sobre este assunto. Tendo em vista que Paulo foi colocado no centro da controvérsia, torna-se necessário voltar nossa atenção à sua pessoa. Até agora, examinamos a origem de seu apostolado. Paulo declarou que seu chamamento não vinha da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por revelação de Jesus Cristo. Ele era um apóstolo de Jesus Cristo e de Deus Pai. Em seguida tratamos da grande crise que estava por trás de seu apostolado. O tema que iremos considerar agora é a constituição do apostolado de Paulo. Para isso vejamos alguns versículos de Gálatas:

"Quando Deus, porém, que desde o ventre de minha mãe me separou e me chamou por sua graça, se agradou em revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios..." (Gl 1:15, 16a). Novo Testamento - Almeida Século XXI (Edições Vida Nova, 2005).

Paulo diz que "agradou a Deus revelar seu Filho em mim". A seguir, vejamos um trecho bem conhecido desta epístola:

"Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esta vida que agora vivo na carne, eu a vivo na fé, a fé que está no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2:19b-20). Versão em português da tradução inglesa usada pelo autor (American Standard Version, 1901).

Precisamos lembrar-nos de que o ponto importante para nós é que esta experiência espiritual do apóstolo Paulo contém todos os princípios da nova dispensação. Se perguntarmos o que é o verdadeiro cristianismo, veremos que a resposta se encontra na história espiritual deste homem. A dispensação na qual vivemos está fundamentada nestes princípios. Aquilo que constitui a presente dispensação é o mesmo que constitui o apostolado de Paulo. Depois de afirmar enfaticamente que não o recebeu de homens, nem mesmo daqueles que eram apóstolos antes dele, Paulo vai diretamente ao coração deste assunto e diz: "agradou a Deus revelar seu Filho em mim". Portanto, a presente dispensação é fundamentada numa revelação interior de Jesus Cristo. Se nós quisermos saber o que é isso no qual supostamente entramos, essa é a resposta.

Nossa verdadeira vida cristã se fundamenta numa revelação interior do Filho de Deus. O apóstolo Paulo havia percebido o imenso significado do Filho de Deus. Aqui temos um homem que estava totalmente embriagado com Cristo Jesus. Em todas as coisas ele via a Cristo. Como já dissemos anteriormente, o nome "Jesus Cristo" ocorre 43 vezes nesta breve epístola.

Primeiramente temos "agradou a Deus revelar seu Filho em mim" e, em seguida, "estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim". Na cruz de Cristo, um homem chamado Saulo de Tarso desapareceu. A cruz mandou embora um tipo de homem, enquanto a ressurreição introduziu outro tipo de homem. Este novo tipo de homem é Cristo, que toma o lugar de Saulo de Tarso.

Este fato é fundamental, constituindo a base de toda a dispensação. Quão imensa seria a diferença se víssemos a Cristo como Paulo O viu! É muito difícil concebermos isso em nossa imaginação. Paulo havia compreendido quem era Jesus de Nazaré. Na estrada de Damasco ele perguntou: "Quem és tu, Senhor?" Jesus lhe respondeu: "Eu sou Jesus de Nazaré". Ele não disse: "Eu sou o eterno Filho de Deus". Ele também não disse: "Eu sou o Deus que se tornou carne". Ele disse: "Eu sou Jesus de Nazaré". Paulo ficou prostrado no chão, impotente e cego. O fulgor daquela glória o fez cair por terra. Naquele momento aquele homem indagou-se: "Este é Jesus de Nazaré em toda essa glória e poder? Tudo isso tem a ver com Jesus de Nazaré?" De fato, é muito difícil que nós entendamos isso. Você deve lembrar algumas das coisas que Paulo posteriormente escreveu sobre Cristo. Quando escreveu aos Filipenses, ele falou de Jesus como aquele que desde a eternidade é igual a Deus. Paulo afirma: "Ele é igual a Deus" (ver Fp 2:5). Ao escrever aos Colossenses, ele forneceu um quadro inigualável de Cristo: "Ele é antes de todas as coisas. Nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Agradou ao Pai que nele residisse toda a plenitude" (ver Cl 1:15-19). Este é Jesus de Nazaré e aqui vemos que Paulo havia compreendido o significado do Filho de Deus.

Pense de novo a respeito de todas estas afirmações que mencionamos. Aquele que é igual a Deus, o instrumento e o herdeiro de toda a criação! Aquele no qual, pela vontade do Pai, todas as coisas subsistem! Aquele que, por desígnio do Pai, iria ter a primazia em todas as coisas! Há muitas outras afirmações de Paulo como estas sobre a pessoa de Jesus. Pois foi justamente este a quem Saulo de Tarso, seus amigos e sua nação crucificaram. Eles perseguiram e crucificaram a Deus manifestado na carne. Eles perseguiram e crucificaram Aquele que criou todas as coisas. Você percebe quão grande é este Homem? Contudo, aqui temos um pequeno homem que O está crucificando. Será que você consegue penetrar nessa situação? Será que você pode entender tudo que este homem sentiu quando percebeu quem era Jesus de Nazaré? Não é de se admirar que Paulo quisesse ser liberto de um sistema que pode fazer tal coisa. Todo o seu ser clamou: "Quero ser emancipado disso! Quero fugir de um sistema que é capaz de fazer isso". Não deve surpreender-nos que a palavra "liberdade" seja um termo tão grande para Paulo. Do mesmo modo, não deve surpreender-nos que ele estivesse tão irado a respeito desse sistema.

Na carta aos Gálatas, Paulo diz: "Ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema" (Gl 1:8). Em seguida, Paulo repete tudo de novo. "E agora repito...", diz ele (Gl 1:9). Quão irado Paulo estava! O evangelho consistia na boa nova de Deus em relação a Seu Filho. Jamais, em todos os seus escritos, vamos encontrar Paulo tão irritado como nessa carta. Parece que ele jogou fora toda a discrição. Ele lança fora toda possibilidade de concessões. De fato, ele diz: "Não pode haver qualquer concessão para com um sistema que tenha feito o que este fez". O legalismo sempre crucifica a Cristo novamente, pois ele elimina a maior palavra do cristianismo. A palavra que deve estar sobre a porta do verdadeiro cristianismo é "graça". O legalismo sempre apaga esta palavra e coloca em seu lugar a palavra "lei". "Graça" é a principal palavra no vocabulário do cristão.

Onde quer que o legalismo alcance sua expressão máxima, ele sempre coloca o crucifixo no lugar do túmulo vazio. O símbolo do cristão é o túmulo vazio. Isso significa vida que nasce da morte. O símbolo do legalismo é um crucifixo, um Cristo morto. O legalismo sempre produz morte. Todavia, a coisa mais importante em relação a Cristo é a ressurreição. Isso é vida que nasce da morte. Isso foi o que Paulo conseguiu ver quando agradou a Deus revelar Seu Filho nele. Então ele imediatamente disse: "Deixem-me sair desse sistema legalista. Jesus de Nazaré, a quem nós crucificamos, está vivo. Ele tem Se revelado vivo em meu coração".

A única emancipação verdadeira de todas as formas de legalismo é ver a Cristo. Nem mesmo todas as forças deste mundo teriam emancipado Saulo de Tarso do judaísmo. A única coisa que pode fazer isso foi ver a Jesus. Portanto, repito: a única coisa que irá emancipar-nos de todas as formas de legalismo morto é realmente ver o Senhor Jesus. Não importa a que você esteja escravizado, seja um cristianismo tradicional morto ou outro tipo de jugo. Se você realmente vir o significado do Senhor Jesus, será emancipado. Nós não devemos andar por aí dizendo às pessoas que elas devem sair de algo ou abandonar alguma coisa a qual estejam ligadas. Seja o que for, não nos compete dizer-lhes que devem sair de alguma coisa e entrar em outra coisa. Gostaria de enfatizar que não nos compete fazer isso. Se você agir assim, só vai tornar as coisas muito piores. Uma grande medida de engano e confusão sempre vai atrás desse tipo de atitude. Algumas pessoas dizem: "Você deve deixar aquilo e entrar nisso". Tais pessoas vão criar problemas e tais problemas não vão glorificar o Senhor Jesus. O único meio pelo qual isso pode ser feito na vida de alguém é realmente ver a Jesus.

Não nos compete pregar sobre a igreja em primeiro lugar. Permitam-me repetir que nossa responsabilidade não é sair mundo afora pregando sobre a igreja. Seja no aspecto universal ou local, não somos comissionados a sair e pregar sobre a igreja. Nunca saberemos o que é a igreja enquanto não tivermos visto a Jesus. Jesus é a igreja em expressão corpórea, ou dizendo de modo contrário, a igreja é a expressão corporativa de Jesus. Nunca poderemos entender o que é a igreja a menos que entendamos o que Jesus é. Sem isso, a igreja será para nós algo muito pequeno e exclusivista. Jesus não é assim: Ele é sobremaneira grande! Quão maravilhoso Ele é! Paulo diz que a igreja é "a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas". Você sabe que o apóstolo Paulo foi o maior mestre do Novo Testamento em relação ao tema da igreja. Entretanto, todo o seu conhecimento da igreja foi resultado dele ter visto o Filho de Deus.

O começo disso tudo foi muito simples: "Saulo, Saulo, por que me persegues"? Saulo poderia ter respondido: "Senhor, não estou perseguindo a Ti. Estou perseguindo estes cristãos". Se ele tivesse respondido assim, Jesus lhe teria dito: "É a mesma coisa. Eu e estes cristãos somos um corpo. Você não pode tocar um membro do meu corpo sem tocar a mim". Esse fato é muito real em relação ao corpo físico. Por exemplo, você tira seus sapatos e vai caminhar descalço no piso. Há ali um alfinete e você pisa nele com o dedo mínimo de seu pé, a parte mais remota, a menor extremidade de todo o seu corpo. Rapidamente você levanta o pé, pois aquilo dói. Como você sabe que aquilo o feriu? Isso ocorre porque a extremidade mais remota de seu corpo tem um relacionamento com a cabeça. Quando você diz que aquilo doeu, você o faz com sua cabeça. De fato, você não pode tocar a parte mais remota de um corpo humano sem tocar a cabeça. Todo o sistema nervoso do corpo físico está centrado na cabeça. Portanto, Jesus teria dito: "Tocar um membro e tocar a cabeça é a mesma coisa. Se você tocar no menor de Meus filhos, estará tocando em Mim". Minha impressão é que Saulo de Tarso nunca teve uma surpresa tão grande como ao ouvir Jesus dizer isso. Naquele momento, lhe foi mostrado que tocar qualquer simples cristão sobre a terra era tocar no Filho de Deus glorificado. O princípio de seu entendimento sobre a igreja ocorreu neste momento. Não há nada de natureza legal nisso, pois tudo é muito espiritual.

Se realmente virmos o Senhor Jesus, seremos emancipados. Alguns de nós tiveram essa experiência. Estávamos em sistemas legalistas e nosso horizonte era aquele sistema. Houve então o dia em que o Senhor abriu nossos olhos para realmente vermos o significado de Cristo. Todo aquele sistema caiu por terra como sendo algo absurdo. De fato, não nos compete dizer aos outros que saiam daqui para entrar ali. As palavras no imperativo ("farás" tal coisa ou "não farás" tal coisa) não pertencem ao contexto em que vivemos. Elas pertencem ao velho âmbito legal. Os imperativos se tornam algo espiritual, interior e não algo legal.

Certamente podemos dizer que havia um imperativo, um sentido de obrigação no espírito de Paulo. "Eu vi o Senhor. Eu estou vendo mais e mais do que o Senhor é. Isso está criando em mim este grande imperativo." Então Paulo diz: "Uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação..." (Fp 3:13-14). Portanto, nós não dizemos: "mude seu sistema"; mas em lugar disso dizemos: "Peça ao Senhor para revelar Seu Filho em você". A partir daí, a grande obra de emancipação irá começar.

Pergunto-me se você já percebeu que sempre que Deus opera um novo mover, Ele o faz com base em Seu Filho. Seja este mover uma nova fase por inteiro de Seu propósito ou o resgate de algo que foi perdido, Deus sempre põe Seu Filho à frente de tudo. O início da Bíblia nos mostra Deus criando um novo mundo. Tudo que Ele faz é no Filho, por meio do Filho e para o Filho. O Filho de Deus é o agente, o instrumento e o padrão da criação. Mais tarde, quando Deus estava iniciando um novo mover, Ele constituiu a vida de Abraão com base em Seu Filho. Passo a passo, Deus conduziu Abraão até o clímax. Quando aconteceu este clímax? "Toma teu filho, teu único filho a quem amas, e oferece-o em holocausto." Este foi o ponto culminante da vida de Abraão. Toda a sua vida foi concentrada naquele momento. Ao dar aquele passo, Abraão penetrou diretamente no coração de Deus. "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito...". O mover de Deus iniciado com Abraão teve como base o Filho de Deus.

Em seguida, o grande passo no mover de Deus ocorreu com a nação de Israel, que estava sob escravidão no Egito. A emancipação de Israel da escravidão teve como base a Páscoa: o sangue e a carne do cordeiro pascal. Deus colocou Seu Filho bem no princípio da vida nacional. Após livrá-los da escravidão com base em Seu Filho, Deus os constituiu como nação no deserto, igualmente com base em Seu Filho. O tabernáculo no deserto é uma representação abrangente e detalhada do Filho de Deus.

Muitos anos depois, quando a nação havia se desviado do Senhor e todos os apelos que lhe haviam sido feitos tinham falhado, Deus levantou os profetas. Alguns deles profetizaram até o cativeiro, enquanto outros profetizaram sobre o que viria após o cativeiro. Entretanto, estes dois grupos de profetas sempre tiveram o Senhor Jesus em vista. No capítulo 53 de Isaías temos o grande quadro do Filho sofredor e Servo do Senhor, o qual fala do período após o cativeiro. Há também as palavras do profeta Miquéias a respeito do Filho que estava para vir e de tudo que Ele significaria. Como você pode ver, a história do povo de Israel estava baseada na apresentação do Filho de Deus.

Depois disso, o grande movimento de Deus neste mundo foi o Novo Testamento, que se inicia com a encarnação do Filho de Deus. Logo em seguida vem a Sua ressurreição. Este movimento segue adiante para mostrar que o significado pleno do Filho de Deus deve ser manifestado por meio da igreja. Portanto, vemos que o Filho de Deus está sempre em vista. Cada movimento novo de Deus se realiza por meio de uma apresentação viva de Cristo.

Nos primeiros três capítulos do livro de Apocalipse, Cristo busca trazer as igrejas de volta à sua posição espiritual original. Trata-se de um movimento que busca por as igrejas à prova e resgatar aquilo que fora perdido. Por causa disso encontramos no primeiro capítulo aquela incomparável apresentação de Cristo. Quão maravilhosa é aquela descrição de Cristo! Leia de novo esta porção da Apocalipse e você perceberá que cada detalhe ali apresentado corresponde a algum aspecto de Cristo. É uma apresentação simbólica e abrangente do significado de Cristo. Creio que é bastante evidente para todos nós que, desde a criação no livro de Gênesis até o fim, no livro de Apocalipse, Deus sempre Se move com base em Seu Filho.

Retornemos a Paulo, onde temos um novo e poderoso movimento de Deus. Ele consiste na emancipação de um povo de toda forma de morte vinda do legalismo. Nos dias de Cristo, as pessoas estavam tão escravizadas ao legalismo quanto Israel havia estado em escravidão no Egito. Deus havia dito a Moisés: "Eu tenho visto a aflição do Meu povo, tenho ouvido seu clamor sob seus feitores e vim para libertá-lo. Portanto, vai, que Eu te enviarei". Nos dias de Cristo, o mesmo Deus viu a escravidão do povo àquele sistema legalista, sob o jugo do qual as pessoas viviam cansadas e sobrecarregadas. O mesmo Deus disse: "Eu vim para libertá-los". Foi como se Ele se voltasse para Paulo e falasse: "Vai, pois Eu te enviarei". Aquele homem era um vaso escolhido para a libertação do povo de Deus. Isso mostra como este assunto era importante aos olhos de Deus.

Todas estas coisas estão concentradas nas seguintes palavras de Paulo: "Agradou a Deus revelar Seu Filho em mim. Estou crucificado com Cristo em relação a todo este sistema legalista. É verdade que estou vivo; contudo, não sou mais eu, mas Cristo vive em mim". Este é mais um capítulo naquela grande questão: O que é o cristianismo? É um sistema legal imposto ao povo de Deus? Ou trata-se de uma grande ação libertadora vinda do céu? Encontramos a resposta disso em outra pergunta: será que nós realmente vimos o Senhor? Será que percebemos qual é o significado de Cristo? Somente com uma resposta positiva a estas perguntas é que poderemos ser um povo liberto.

Precisamos encerrar esta parte por aqui. Em seguida, iremos tratar daquilo que considero ser um dos aspectos mais importantes de todo este assunto: a diferença real e fundamental entre a velha e a nova dispensação. Minha sugestão é que você leia a epístola aos Gálatas uma vez mais antes de entrarmos nesta seção.

 

Capítulo 4

Chegamos agora à parte que sinto ser das mais importantes dentre aquilo que temos compartilhado. Todavia, meu temor é que ela seja a parte mais difícil de compreender. Confiaremos no auxílio do Senhor para conosco nesse sentido.

Temos visto que na epístola aos Gálatas está concentrada a grande mudança que ocorreu com a vinda do Senhor Jesus. A vinda de Cristo a este mundo mudou as dispensações e transformou completamente a natureza das coisas. Portanto, Cristo ocupa a posição de um divisor de dois sistemas. Todo o sistema do judaísmo, que existiu até o tempo da Sua vinda, foi posto de lado quando Ele veio ao mundo. Desde então, conforme o próprio Senhor disse, uma nova ordem foi estabelecida. Isso é expressado pelo uso freqüente que Ele faz da expressão "a hora vem e já chegou".

Iremos considerar agora a natureza essencial desta grande divisão, ou seja, como a nova dispensação e a nova ordem diferem da antiga. Este é um assunto de suma importância para nós e para todos os cristãos, se eles se dispuserem a aceitá-lo. Na verdade, o cristianismo tal como o conhecemos tem sido amplamente fundamentado sobre a velha dispensação. Desse modo, a grande diferença entre o velho e o novo não tem sido plenamente reconhecida. Vamos então dedicar-nos a tentar entender a diferença entre a velha e a nova dispensação.

A própria natureza da antiga dispensação judaica colocava tudo na esfera dos sentidos naturais. Primeiramente, ela estava situada no âmbito dos sentidos físicos. Tudo era relacionado com o ver com os olhos físicos, o ouvir com os ouvidos físicos e o sentir com a mão física. Tratava-se de coisas que podiam ser tocadas, coisas tangíveis, coisas sobre as quais podíamos colocar nossas mãos. A antiga dispensação era também relacionada com o olfato dos órgãos físicos. Você percebe que as ofertas e o incenso eram relacionados com o olfato, pois o aroma agradável podia ser sentido por eles. Por fim, havia a experiência física, pois todas as festas dos judeus eram relacionadas a esse tipo de experiência externa. Não é preciso discutir isso, pois é algo perfeitamente claro e simples.

Toda a antiga dispensação judaica se baseava nos sentidos físicos. Entretanto, ela não ficava somente nisso, mas também adentrava na esfera da alma. Entendemos que a alma é composta de três partes: razão, emoção e vontade. Nesse sentido, a alma compreende aquilo que apela à nossa razão natural, aquilo que apela ao nosso sentimento natural e aquilo que apela à nossa vontade natural. Assim percebemos que o corpo e a alma constituíam o todo do homem na antiga dispensação. O corpo e a alma governavam tudo. Esta é a base de tudo no Antigo Testamento. Deus adaptou todas as coisas a esta base. Ele deu a Seu povo um tabernáculo que podia ser visto e tocado por eles. Ele deu-lhes o incenso que podia ser cheirado e os alimentos que eles podiam provar. Deus constituiu todas as coisas nesta base durante a antiga dispensação. Contudo, isso era apenas uma fase correspondente ao jardim de infância.

Sabemos em que consiste o jardim de infância. Você reúne as crianças pequenas e as ensina por meio de figuras e modelos, ou seja, usando coisas que eles podem ver com os olhos e tocar com as mãos. Essa é a natureza de uma escola no jardim de infância. O Antigo Testamento foi todo constituído na base do jardim de infância. Nele, Deus estava lidando com Seu povo como crianças pequenas. Este é um resumo da natureza de todas as coisas no antigo sistema judaico. Vejamos agora a diferença entre este sistema e a nova ordem espiritual.

Qual é a essência da natureza daquilo que veio a este mundo com Jesus Cristo? Trata-se de uma ordem espiritual. Nada mais pode começar pelos sentidos naturais. Toda esta nova ordem começa em outro ponto. Nesta altura, estamos nos mantendo muito próximos da carta aos Gálatas. Talvez não seja elegante perguntar se você tem lido esta epístola enquanto tratamos de nosso tema. Contudo, uma das vantagens de conhecermos a Palavra de Deus é que nos tornamos capazes de discernir o que está certo. Você ouve alguma coisa e percebe que já leu aquilo na Palavra de Deus. Além disso, existem muitas outras vantagens. Nesta carta aos Gálatas, a palavra "Espírito" ocorre 12 vezes. Essa palavra é, no todo, a chave para a epístola. Agora, nada mais é segundo a carne, mas segundo o Espírito. Esse fato determina que uma dispensação essencialmente espiritual foi introduzida.

Você há de lembrar das palavras do Senhor Jesus à mulher samaritana. Ela havia dito: "Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar". Jesus então respondeu: "Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade". Essa é a natureza daquilo que veio ao mundo com Jesus Cristo.

Creio que sabemos, tanto pela Palavra de Deus como por nossa própria experiência, que na presente dispensação as pessoas não nascem segundo a carne em relação a Deus. Isso significa que elas não são como o povo de Deus que nasceu de Abraão, que foi o pai da nação de Israel. Hoje, estas pessoas nascem do Espírito. Elas não são geradas pelo homem, mas pelo Espírito. Jesus disse: "O que é nascido do Espírito é espírito". No capítulo 12 da epístola aos Hebreus, o autor fala sobre o "Pai de nossos espíritos" (Hb 12:9). Almeida Revista e Corrigida (SBB, 1969); Versão Revisada de Almeida (JUERP, 1974); Edição Contemporânea de Almeida (Ed. Vida, 1990); Almeida Corrigida e Revisada (SBT, 1994). Ele não é pai de nossos corpos, nem é o pai de nossas almas naturais. Ele é o Pai de nossos espíritos. Mas o que acontece quando somos gerados do Espírito? Qual é a natureza real do novo nascimento? Aqui está o verdadeiro significado da ação do Espírito Santo.

O Espírito Santo veio especialmente para criar uma ordem espiritual que abrange todas as coisas. Ele começa a fazer isso com o indivíduo. A palavra dada a cada pessoa é: "Você deve nascer de novo". Aquilo que é nascido do Espírito é espírito. Portanto, o que acontece quando nascemos do Espírito? Já vimos antes que aqueles que nasceram da carne na antiga dispensação eram inteiramente governados por um conjunto de sentidos físicos. Quando somos verdadeiramente gerados do Espírito, nós recebemos um novo conjunto de sentidos espirituais. Em seu propósito, eles correspondem aos antigos sentidos. Entretanto, eles são espirituais e não físicos.

Por meio do Espírito Santo nós recebemos uma nova capacidade de visão. Você sabe que o Novo Testamento fala muito sobre ter os nossos olhos abertos. Jesus referiu-se a este princípio quando abria os olhos dos cegos. Ele estava ilustrando a grande verdade espiritual de que na nova criação nós adquirimos uma nova capacidade de visão. Cada verdadeiro filho de Deus que nasceu de novo deve ser capaz de dizer: "Eu era cego, mas agora vejo". A verdade sobre um filho de Deus é que suas primeiras palavras são: "Agora eu vejo". Eles receberam uma nova faculdade de visão espiritual. Diferentes nomes são dados a isso no Novo Testamento. Algumas vezes a expressão usada é "discernimento espiritual", enquanto outras vezes é "entendimento espiritual" ou "percepção espiritual". Seja qual for o nome, o significado é o mesmo, pois implica que agora eu posso ver algo que nunca pude ver antes. Eu tinha nascido cego quanto ao verdadeiro significado das coisas espirituais. Contudo, o Espírito Santo realizou o grande milagre de dar-me novos olhos.

Isso pode lhe parecer algo muito simples. Entretanto, não se trata de ter visão quando você nasce e logo depois ficar cego novamente. A expectativa é que você siga vendo cada vez mais e mais. No plano natural, cada um de nós é capaz de ver mais hoje do que quando nasceu. Podemos ver mais hoje do que víamos quando éramos bebês. Progressivamente vamos vendo mais e mais. Também deve ser assim espiritualmente. A faculdade espiritual da visão nos colocou num mundo inteiramente novo, que não é material, mas espiritual. Veja o que o apóstolo diz a respeito disso: "Mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano... Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito..." (ver 1 Co 2:9-10). A primeira faculdade do novo nascimento é a visão espiritual.

Você pode perceber a diferença entre a antiga e a nova dispensação? O povo de Israel tinha todas aquelas coisas que eles podiam contemplar com seus olhos naturais. Eles podiam ver o tabernáculo ou o templo. Eles também podiam ver os sacerdotes e os sacrifícios. Eles podiam ver as festas. Contudo, eles eram totalmente cegos para o significado destas coisas. Por causa de sua cegueira em relação a isso, eles crucificaram Aquele que dava cumprimento a tudo que eles viam com seus olhos naturais. Apesar de todo o alcance de sua visão natural, eles eram espiritualmente cegos. Portanto, a obra inicial do Espírito Santo no novo nascimento é dar-nos novos olhos espirituais. Talvez eu o ofenda caso lhe pergunte se você recebeu novos olhos espirituais. Todavia, isso é verdade não apenas quanto à nossa capacidade de ver, mas também quanto à nossa capacidade de ouvir.

Na antiga dispensação, tudo o que era ouvido vinha por meio dos ouvidos naturais. Contudo, o povo de Israel era surdo para com a voz de Deus. O que Ele falava não ia além dos tímpanos de seus ouvidos. Na nova ordem do Espírito, uma nova faculdade de audição nos é concedida. Nós, cristãos, temos o costume de usar uma expressão: "O Senhor falou comigo". Ao dizermos isso não estamos afirmando que ouvimos algo com nossos ouvidos naturais. Quando falo assim, estou querendo dizer que ouvi o Senhor falar em meu coração. Isso significa que recebi uma nova capacidade. A nova dispensação é construída sobre este princípio.

Ao dizer uma parábola, Jesus concluía dizendo: "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça". Você também sabe que Ele falou assim para as sete igrejas que estavam na Ásia. Após haver falado com cada uma daquelas igrejas, o Senhor repetiu sete vezes a frase: "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz...". Entretanto, precisamos lembrar que esse falar do Senhor com as sete igrejas não foi com voz audível. Aquelas igrejas não ouviram uma voz vinda do céu, por meio de ouvidos naturais. O que elas receberam foi o que o Espírito disse às igrejas, e esse falar não é físico, mas espiritual. Isso pode ser ilustrado de muitas formas.

Podemos mencionar o falar de espírito para espírito. Às vezes encontramos um outro filho de Deus e não temos muito a dizer com nossos lábios, mas sabemos que aquela pessoa é um filho de Deus. Seu espírito fala com nosso espírito. Temos uma linguagem espiritual entre nós. Sabemos que pertencemos à mesma família. Podemos discernir o Espírito um no outro, pois ambos recebemos essa nova faculdade de ouvir espiritualmente. Não se trata de ouvir externamente, pois é um ouvir interior. Logo, aquilo que é verdadeiro quanto ao ver e ao ouvir também se aplica a todos os outros sentidos.

O que podemos dizer sobre o olfato espiritual? Você sabe o que é isso? Às vezes basta você ir a algum lugar e perceber algo naquela atmosfera. Ninguém precisa dizer-lhe nada, mas você sente que há algo errado ali. Você sente que naquele ambiente existe morte e não vida. Não é o Senhor que está ali, mas o homem. Não é o Espírito que está presente, mas a carne. Você sente tudo isso com a sua faculdade de olfato espiritual.

Em outra ocasião, você encontra uma pessoa. Não é preciso que você fale, nem que a outra pessoa fale, mas você percebe que há alguma desconfiança naquela pessoa. Ela está guardando algum preconceito e seu coração está fechado. Encontramos pessoas que não se mostram abertas para conosco, que mostram estar tentando enganar-nos, que estão ocultando algo de nós. Como podemos perceber isso? Por meio do cheiro percebido pelo sentido espiritual do olfato. Esta é uma faculdade muito importante. Essa faculdade nos permite sentir o que é do Senhor e o que não é dEle.

O incenso da antiga dispensação era um aroma suave, ou seja, algo muito agradável. A isso corresponde a faculdade espiritual do olfato. Ela se expressa fazendo com que percebamos algo muito agradável, uma atmosfera de vida, algo que agrada sobremaneira ao Senhor. Portanto, essa faculdade é um princípio de direcionamento. No plano natural, quando vamos a um lugar em que há um mau cheiro, nós tapamos as narinas e deixamos aquele local, pois tal atmosfera nos faz mal. Numa ocasião desse tipo, seu nariz pode salvar sua vida de uma febre contagiosa ou de alguma outra doença grave. O mesmo se aplica de forma muito real na vida espiritual. Se este sentido espiritual do olfato ou se esta faculdade de discernimento espiritual estiver realmente viva e afiada, saberemos o que é vida e o que é morte. Saberemos discernir o que é saudável espiritualmente e o que traz prejuízo espiritual.

Não quero seguir adiante nessa linha. Apenas estou dizendo que, ao nascermos de novo, recebemos um novo conjunto de sentidos espirituais. Assim como os sentidos físicos governavam na antiga dispensação, os sentidos espirituais devem governar na nova dispensação. Ao lermos a primeira carta de Paulo aos Coríntios, notaremos que ela foi construída exatamente sobre essa diferença. Os cristãos de Corinto estavam vivendo com base nas coisas naturais. Portanto, eles não estavam vivendo segundo o discernimento espiritual. Paulo então teve que dizer-lhes: "Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente". Então ele adiciona: "Mas o que é espiritual discerne bem tudo, enquanto ele por ninguém é discernido" (1 Co 2:14-15). Versão Revisada de Almeida (JUERP, 1974). O homem espiritual é um mistério para o mundo.

Um homem ou uma mulher espiritual constituem-se num mistério para o mundo, pois as pessoas do mundo não podem entendê-los. Paulo ilustra esse fato da seguinte maneira: "Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está?" Se você e eu queremos nos entender como seres humanos, então precisaremos ser seres humanos possuidores da natureza humana. Outros tipos de seres criados não são capazes de entender os seres humanos. Os homens entendem uns aos outros simplesmente porque são homens. Do mesmo modo Paulo afirma: "Nenhum homem entende as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus que nele está" (ver 1 Co 2:11).

Precisamos agora entrar naquilo que penso ser a parte mais difícil de tudo. Vamos ver o capítulo quatro da epístola aos Hebreus. O versículo 12 nos diz assim:

"Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração" (Hb 4:12).

Nesta oportunidade, iremos nos concentrar apenas na primeira parte do versículo, enfatizando o seguinte aspecto: a Palavra de Deus é viva e eficaz, penetrando até efetuar a separação entre alma e espírito.

Percebemos que a afirmação começa com a conjunção "porque". Isso mostra que o versículo está relacionado com algo que o autor estava dizendo logo antes. Qual era seu assunto? Ele falava sobre a jornada de Israel no deserto e seu fracasso quanto a entrar na terra prometida. Hebreus nos diz que, se Josué lhes houvesse dado descanso, não lhes teria falado mais tarde de outro descanso. Ele está nos dizendo que Israel segundo a carne não conseguiu entrar no descanso de Deus. Eles falharam em entrar no propósito para o qual Deus os havia tirado do Egito. Com exceção de dois homens, toda aquela geração morreu no deserto. Eles não puderam entrar no propósito que Deus estabelecera ao redimí-los.

Portanto, temos o versículo (Hb 4:12), temos seu contexto e também temos a conjunção inicial. "Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito." O que isso significa? O velho Israel vivia inteiramente na base da vida natural e dos sentidos naturais. Tudo para eles se relacionava ao que podiam ver e tocar aqui nesta terra. Sua vida era inteiramente no plano da alma. Segundo o autor de Hebreus, foi por causa disso que eles não puderam entrar no descanso. A Palavra de Deus sempre separa com precisão a alma e o espírito.

Na nova dispensação, o novo povo que vai entrar em todo o propósito de Deus deve ser um povo espiritual e não um povo que anda segundo a alma. Eles precisam ser constituídos com base no que é espiritual e não com base nas coisas naturais. Toda a carta aos Hebreus é construída sobre uma diferença que há entre o velho e o novo. É preciso bastante espaço para mostrar onde a antiga aliança falha. A antiga lei falha, o antigo sacerdócio falha, os antigos sacrifícios falham, o antigo tabernáculo falha e o antigo templo falha. O fracasso foi completo, pois tudo foi construído numa base natural, a base da alma. Contudo, o novo não irá falhar e a carta aos Hebreus introduz a nova ordem. O sumo-sacerdote está no céu, um único sacrifício foi oferecido para sempre e assim por diante. Há uma ordem espiritual em tudo, sendo que a Palavra de Deus opera a divisão entre as duas ordens.

Quando chegamos ao final da epístola aos Hebreus, vemos o autor fazer a seguinte afirmação: "Tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos disciplinavam segundo lhes parecia bem e nós os reverenciávamos" (ver Hb 12:9). Segundo a versão em inglês usada pelo autor (American Standard Version, 1901). Em português, ver a edição corrigida e revisada de Almeida (Soc. Bíblica Trinitariana, 1994). Me pergunto se isso é verdadeiro com todos nós. Quando nossos pais segundo a carne nos davam uma boa surra, nós os reverenciávamos? Será que nós agradecíamos a eles? Pelo contrário, ficávamos muito chateados com nossos pais segundo a carne. Ao nos tornarmos adultos, passamos a reconhecer que nossos pais estavam certos, pois a disciplina foi a melhor coisa para nós. Todavia, o apóstolo diz: "Tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos disciplinavam segundo lhes parecia bem e nós os reverenciávamos. Não havemos de dar muito maior reverência e estar em muito maior submissão ao Pai dos espíritos e, então, viveremos?" Vemos como o princípio se aplica no plano natural, inferior. O princípio espiritual é muito mais elevado: Deus é o Pai de nossos espíritos!

Isso é o que ocorre quando nascemos de novo. Não são nossas almas que nascem de novo, mas nossos espíritos. Aquela parte mais interior de nosso ser morreu com Adão, ou seja, foi separada de Deus quando Adão pecou. Por causa disso, todos os filhos de Adão são por natureza mortos no sentido espiritual. Nossos espíritos morreram com Adão, mas em Cristo eles são vivificados novamente. O novo nascimento não é um renascer do corpo físico e também não é um novo nascimento da alma. Trata-se do novo nascimento de nosso espírito, sendo que Deus é o Pai de nossos espíritos. É por isso que, na carta aos Gálatas, que demarca a grande separação, procurei ressaltar o fato de que a palavra "espírito" ocorre 12 vezes. Deus é o Pai de nossos espíritos e, portanto, não somos filhos de Abraão, mas filhos de Deus e isso faz uma grande diferença.

Este é o tema da argumentação de Paulo na epístola aos Gálatas. Vejam o que ele diz: "Ó gálatas insensatos! Quão tolos vocês são! Vocês começaram no Espírito e agora estão voltando para a carne. Vocês saíram da antiga dispensação e da antiga ordem para entrar na nova vida do Espírito, mas agora estão retrocedendo e perdendo seu direito ao descanso, perdendo o propósito de sua redenção. Ó gálatas insensatos! Que coisa mais tola é viver na antiga dispensação!"

Nesse sentido, é preciso que notemos que o cristianismo com o qual estamos familiarizados é amplamente constituído com base na antiga dispensação. Seria necessário mais tempo para demonstrar isso de forma plena. Contudo, será que percebemos como o cristianismo opera em nossos dias? Ele começa erguendo edifícios religiosos que são chamados de "igrejas". Trata-se de um nome absolutamente falso, pois a igreja não é um edifício feito por mãos humanas. Em seguida, um certo tipo de ordem é estabelecido. Logo depois, algumas pessoas são designados para cuidar da obra. Quando este grupo de pessoas termina seu edifício, escolhe seus diretores, o ministro e todos os outros cargos e define como as coisas serão feitas, então eles pedem ao Senhor que venha para estar presente ali com eles. A organização e as coisas externas vem antes de tudo. Tudo está construído sobre o princípio da alma. Tudo está relacionado à razão, à emoção e à vontade. Este é o cristianismo judaizante. O método de Deus é justamente o inverso disso.

Em que ponto Deus inicia tudo? Ele não começa com igrejas, mesmo que elas sejam grupos de pessoas. Obviamente, Deus não começa por edifícios, assim como não o faz por um ritual ou um sistema de fazer as coisas. Ele também não começa reunindo uma congregação. Deus começa gerando um, dois ou três por meio do novo nascimento. Deus começa por uma obra do Espírito Santo em vidas individuais. Pode ser que tudo comece com uma pessoa somente e depois outra e logo mais outra. Se estes três se encontram na mesma cidade, eles estão juntos, não por terem aceitado o cristianismo, mas por terem em si o mesmo Espírito. Assim começa a igreja naquele lugar e aquilo que foi verdade para o princípio tem que ser verdade para todo o resto que vem depois.

As mãos do homem devem ser mantidas fora das coisas do Espírito. O homem não deve tentar formar algo que é do Espírito. O próprio Espírito Santo que começou a obra é perfeitamente capaz de formar aquilo que Ele quer. Portanto, nossa responsabilidade é ser guiados pelo Espírito, buscar sempre a direção do Espírito e, até que tenhamos certeza de que o Espírito está realmente nos dirigindo, manter nossas mãos fora da obra de Deus. Não faremos nada sem essa certeza, pois aquilo que está sendo feito tem que ser do Espírito. Esta é a ordem da presente dispensação.

Será que percebemos a diferença entre o princípio de tudo e a situação hoje em dia? Nos primeiros 30 anos do cristianismo, o evangelho se espalhou por todo o mundo da época. Haviam igrejas em quase todos os países do mundo. Elas estavam por todo o império romano e em territórios sujeitos à autoridade romana. Milhares e milhares foram unidos ao Senhor. Isso foi algo maravilhoso que levou apenas 30 anos para ser realizado. Desde então, 2.000 anos se passaram. Enviamos multidões de missionários pelo mundo inteiro. Gastamos milhões em dinheiro com divulgação. Temos trabalhado intensamente. Contudo, nesses 2.000 anos, não há nada que se possa comparar com aqueles 30 anos. Se aquilo que ocorreu nos primeiros 30 anos tivesse continuado por 2.000 anos, o Senhor já teria retornado há muitos anos atrás. Por que as coisas não continuaram daquele modo? Porque tudo foi trazido de volta à base da alma e não numa base espiritual. Quando as mãos dos homens estão fora e tudo está nas mãos do Espírito Santo, as coisas espirituais se realizam.

Meu encargo é que haja algo dessa natureza no lugar em que vivemos. Se aquilo em que estamos envolvidos é totalmente do Espírito, veremos que algo irá acontecer. Toda a cidade saberá e as pessoas irão comentar a respeito disso. O inimigo será incitado a levantar-se em oposição. É sempre um bom sinal quando o inimigo sente que há algo contra o qual ele tem que lutar. Ele sabe que aquilo contra o qual ele se levanta significa algo contra o seu reino.

Precisamos parar neste ponto, embora não tenhamos concluído esta parte do assunto. Apesar disso, não devemos somente ficar esperando pelo final. Esta é uma palavra para nós, hoje. Se tivéssemos que interromper tudo agora e não mais nos víssemos nesta terra, penso que já teria compartilhado com vocês a palavra mais vital que poderia ser dita. Tal palavra representa a completa mudança do antigo para o novo, do natural para o espiritual e das coisas que são dos homens para as coisas que são de Deus.

 

Capítulo 5

Chegamos à última parte de nossa abordagem de uma grande questão, que diz respeito à verdadeira natureza da dispensação que veio com o Senhor Jesus. Portanto, é necessário reunir tudo que vimos até aqui num só tema. Já cobrimos um terreno muito amplo, mas tudo se concentra num só assunto. Não se trata de colocar um sistema contra o outro, ou seja, não é uma questão de judaísmo em oposição ao cristianismo. Não é uma questão de legalismo contra espiritualidade. Não é uma questão do Antigo Testamento contra o Novo Testamento. Também não é uma questão de Paulo contra seus inimigos. Todas estas coisas já foram abordadas naquilo que compartilhamos, mas elas não são o nosso tema específico.

Houve uma grande batalha que se iniciou com a vinda do Senhor Jesus e o apóstolo Paulo foi um instrumento escolhido para atuar nela. O motivo desta batalha não foi alguma interpretação especial das Escrituras, nem mesmo algum tipo particular de doutrina. Esta batalha também não ocorreu em defesa de uma forma especial de adoração. Trata-se de uma batalha muito maior que qualquer uma destas coisas.

Embora a epístola aos Gálatas aborde todos estes assuntos, seu tema está concentrado em uma palavra. Toda a carta e tudo aquilo com o qual ela trata é concentrado em um só versículo. Se formos contar as palavras, acharemos que é um versículo bem curto. No entanto, veremos que é um trecho de enorme significado. Leiamos Gálatas 4:19:

"Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós". Versão Revisada de Almeida (JUERP, 1974).

Há uma pequena alteração que deve ser feita na tradução. A palavra "formado" deve ser traduzida "plenamente formado". Portanto, o versículo deve ser escrito assim: "Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja plenamente formado em vós."

Percebemos que toda esta batalha, em todos os seus aspectos, está concentrada nesse tema de Cristo ser plenamente formado em nós. Não é outra coisa senão o assunto da formação de Cristo em plenitude. Isso diz respeito a Cristo plenamente formado na vida de cada crente e a Cristo plenamente formado na igreja. Portanto, notamos que tudo aquilo que compartilhamos se concentra em uma questão. Cristo é o teste de todo homem e de todas as coisas. Cristo é o teste da igreja e das igrejas. Cristo é o teste de cada ensino. A avaliação de que algo está certo ou errado se decide neste único ponto. Quanto de Cristo podemos encontrar nisso? Quanto do Espírito de Cristo se pode encontrar nisso? Podemos resumir todas as nossas questões e todos os nossos problemas nesse único ponto. Tudo sempre é uma questão de quanto do Espírito de Cristo eu posso encontrar nas pessoas, num ensino ou em outras coisas. Peço que vocês guardem muito bem o que estou dizendo, pois este é o fator decisivo.

Este foi o fator decisivo nas igrejas da Galácia. No versículo que acabamos de ler, o apóstolo não diz que está sofrendo dores de parto por um sistema contra outro. Igualmente, ele não diz que sofre dores de parto por um tipo de ensino em oposição a outro, ou por uma forma de adoração contra outra. Paulo também não diz que sofre dores de parto por uma interpretação do significado da igreja e das igrejas em oposição a outra interpretação. Não vemos o apóstolo dizer coisas como "sofro dores de parto pelo cristianismo contra o judaísmo" ou "sofro dores de parto pela espiritualidade contra o legalismo". Paulo nunca diz tais coisas, tanto em aspectos particulares como em geral. Seu encargo era muito maior do que todas estas coisas. Ele afirma: "Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja plenamente formado em vós". Já mencionamos anteriormente que o nome "Cristo" ocorre 43 vezes nesta epístola tão breve. Esse fato é, portanto, a chave de tudo.

Isso nos leva à maior coisa que já foi revelada por Deus ao homem e que está centrada em uma palavra nesta epístola. A palavra "filho" ou "filhos" ocorre seis vezes em Gálatas, sendo que o significado da filiação é a maior coisa que Deus já revelou ao homem. Paulo começou a carta com isso. Em Gl 1:15,16, ele diz: "Agradou a Deus revelar Seu Filho em mim". Foi isto que ocasionou uma virada completa na vida de Paulo. Esse fato determinou a grande mudança nele e na presente dispensação. A revelação de Jesus Cristo, o Filho de Deus, é o fundamento de tudo. Portanto, Paulo lança o fundamento dizendo: "Deus revelou Seu Filho em mim".

Em Gl 4:6 Paulo diz: "E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho...". O Espírito Santo é o espírito de filiação no crente. O Espírito Santo é o Espírito do Filho de Deus. Portanto, a vinda do Espírito Santo para habitar no interior do crente faz dele potencialmente um Filho maduro de Deus.

Prestem atenção na palavra que o apóstolo utilizou: "meus filhinhos". Se vocês puderem ler o original grego, notarão algo a respeito desta expressão. Paulo não diz "meus filhos crescidos", nem mesmo chama os gálatas de "filhos", mas emprega o termo "filhinhos". Existem duas palavras no grego que são usadas para "filho". Uma delas é esta que foi traduzida como "filhinhos", que se refere a alguém ou algo que nasceu mas ainda não cresceu, ou seja, ainda é imaturo. Há uma outra palavra grega usada para "filho", a qual se refere aos filhos que já cresceram.

Agora podemos perceber como a epístola aos Gálatas focaliza esta diferença. Paulo diz: "Ó gálatas insensatos!" Isso significa: "Vocês são como crianças tolas. Vocês nasceram, mas não cresceram. Vocês tiveram um bom começo, mas a formação de Cristo foi interrompida". Então ele afirma que o Espírito Santo nos foi dado com a intenção de concretizar a plena formação de filhos.

Nesta carta, o apóstolo contrasta a antiga dispensação com a nova nesse ponto específico. Ele diz que na antiga dispensação Israel era apenas uma nação de criancinhas. Como fazemos quando desejamos ensinar crianças pequenas? Primeiramente temos que ensiná-las por meio de figuras e modelos. Todo o ensino tem que ser dado por meio de coisas externas a elas. As crianças aprendem pela apresentação das coisas a elas como objetos. Além disso, elas são ensinadas por meio de mandamentos: "Você deve fazer isso, mas não deve fazer aquilo; se você quer ser um bom menino ou uma boa menina, vai fazer o que estou mandando". É assim que você trata com as crianças pequenas. O procedimento para com os adultos é justamente o oposto disso.

Um filho crescido não necessita que outros estejam sempre lhe dizendo o que deve fazer. Se um filho já amadureceu, seu pai não precisa ficar constantemente lhe dizendo: "Você tem que fazer isso e não pode fazer aquilo". Um filho verdadeiramente crescido sabe em seu interior o que deve fazer e o que não deve fazer. Ele não necessita que as coisas lhe sejam apresentadas em quadros e figuras, pois ele próprio é capaz de discernir. Um filho que é realmente um filho sabe em si mesmo o que seu pai aprova e o que ele desaprova. Não é necessário que o pai fique dizendo dia após dia: "Meu filho, essa é a minha vontade". Um verdadeiro filho sabe em seu coração o que agradaria a seu pai. Trata-se de intuição e não de mandamento, e essa é a diferença.

Portanto, a distinção entre a antiga dispensação e a nova se refere à inteligência espiritual. Afinal, esta é a diferença entre um filho pequeno e um filho maduro. A criança não possui a inteligência em si mesma. A inteligência está fora dela, em outras pessoas. Contudo, um homem maduro possui a inteligência em si mesmo. Este é o grande contraste que Paulo enfatiza na epístola aos Gálatas. Ele afirma: "Meus filhinhos, vocês carecem de inteligência. A verdadeira marca da maturidade, que é a inteligência espiritual, ainda não está em vocês".

Existe uma outra diferença entre o filho pequeno e o filho maduro. O filho pequeno precisa que alguém faça tudo para ele. É necessário que façamos tudo para nossos pequeninos, sempre que eles precisarem. Providenciamos a comida, as roupas, a família, a casa e todas as demais coisas. O filho pequeno não provê nada para si mesmo.

O filho maduro é diferente. Ele é capaz de assumir responsabilidades e seu pai sabe que pode confiar nele. O pai não precisa estar constantemente preocupado em saber se o filho fará a coisa certa ou a coisa errada. Ele está descansado em relação a seu filho e diz: "Eu sei que posso confiar nele e dar-lhe responsabilidades, pois ele está capacitado para assumí-las".

Ao longo da história de Israel no Antigo Testamento, podemos ver como eles eram irresponsáveis. Faça uma retrospectiva da história de Israel durante a peregrinação no deserto e nas épocas posteriores. Eles sempre precisavam que tudo lhes fosse providenciado. Eles sempre necessitavam que lhes dissessem o que deviam fazer e o que não deviam fazer. Isso é a lei registrada em tábuas de pedra e não em seus corações. Eles eram um povo muito irresponsável, de modo que nem o servo de Deus, nem o próprio Deus podiam confiar neles. Bastava deixá-los por si mesmos um dia e eles faziam tudo errado. Eles eram como cavalos, nos quais temos que colocar freios e cabrestos para que nos obedeçam. Sabemos que esta ilustração é usada nas Escrituras. Salmo 32:9. Entretanto, o crescimento em Cristo é algo totalmente diferente disso.

A filiação significa responsabilidade espiritual. Devido a habitação interior do Espírito, somos capazes de dizer: "Eu sei que estas pessoas são confiáveis. Eu sei que o Senhor está nelas. Eu sei que elas próprias sabem que o Senhor habita nelas. Por causa disso, posso confiar no Senhor que está nestas pessoas". Acaso não desejamos que todos os crentes sejam assim? Pois nisso está a diferença entre os filhinhos e os filhos maduros.

Vejamos o que Paulo diz em Gálatas: "Porque sois filhos, o Espírito nos foi dado como o Espírito de filiação. Deus enviou o Espírito de Seu Filho aos nossos corações" (ver Gl 4:5,6). Paulo não está contradizendo a verdade da diferença entre filhinhos e filhos maduros. Ele está dizendo que ao recebermos o Espírito Santo, recebemos a filiação em potencial. Isso quer dizer que a partir de então, o Espírito Santo torna possível a plenitude de Cristo. Toda a plenitude de Cristo está no Espírito Santo que habita em nós. Contudo, temos diante de nós a seguinte pergunta: será que vamos continuar como crianças? Ou será que vamos viver no Espírito e crescer até sermos filhos plenamente maduros?

O apóstolo Paulo estabelece outro contraste nesta carta ao comparar filhos com escravos. Neste caso, ele não está enfatizando a relação entre Israel e o cristianismo, pois a ilustração é tomada da vida entre os gregos. No sistema grego, o escravo tomava o filho pequeno da família pela mão e o levava até o mestre que iria ensiná-lo. O escravo conduzia aquela criança em meio ao tráfego de pessoas na rua, passando até mesmo por lugares perigosos. Ele cuidava do menino e fazia tudo por ele. Ao chegar à escola, o escravo entregava o menino àquele que haveria de educá-lo. O filho era entregue às mãos daquele que haveria de dirigir sua educação espiritual.

Paulo nos diz que a lei era o escravo, cuja função era tomar-nos pela mão e conduzir-nos até Cristo. Como podemos ver, a lei relaciona-se com crianças pequenas. A lei provê tudo que é necessário para elas. O propósito da lei era levar-nos pela mão até o Espírito Santo, para que então o Espírito Santo nos conduzisse à filiação. Portanto, Paulo estabelece a diferença entre o escravo e o filho. O escravo faz tudo por nós externamente, mas o Espírito faz tudo em nós no interior. Por causa disso, Paulo coloca ênfase nesta expressão: "Até Cristo ser plenamente formado em vós".

O caráter absoluto dessa nova dispensação é "Cristo em nós". Isso nos leva de volta a Gálatas 2:20: "Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim". O Espírito Santo que habita em nós está conosco para capacitar-nos a entender as coisas do Senhor, ou seja, dar-nos inteligência espiritual sobre as coisas do Senhor.

Em outro lugar, o apóstolo afirma: "A palavra de Cristo habite em vós ricamente, em toda a sabedoria" (Cl 3:16). Versão Revisada de Almeida (JUERP, 1974). Antes que possamos ter a sabedoria, o entendimento espiritual, precisamos ter a Palavra habitando ricamente em nós. O fundamento da obra do Espírito Santo em nossas vidas é que a Palavra do Senhor esteja ricamente em nós. É imprescindível que tenhamos um conhecimento amplo e abrangente das Escrituras, pois isso é a base da obra do Espírito Santo. Ele nunca fará qualquer coisa à parte da Palavra de Deus.

Não tenho palavras para expressar a alegria que tenho por ter podido estudar a Bíblia extensivamente antes de enfrentar uma grande crise espiritual. Eu estudei a Bíblia sistematicamente do início ao fim. Em função disso, podia escrever num quadro negro um esquema e uma análise de cada livro da Bíblia, assim como podia dar palestras sobre eles. Contudo, foi necessário que eu tivesse uma crise espiritual muito real para que pudesse entender a Bíblia que eu conhecia tão bem em minha mente. Foi naquele momento que a Bíblia que eu conhecia tornou-se um livro vivo.

Você lembra do que aconteceu com os apóstolos no dia de Pentecostes. Eles eram judeus e conheciam muito bem as Escrituras dos judeus, ou seja, conheciam muito bem o que estava escrito no Antigo Testamento. Eles poderiam dizer-nos tudo que Moisés havia escrito. Eles também poderiam dizer-nos tudo que Davi havia escrito, assim como tudo que os profetas haviam escrito. Entretanto, no dia de Pentecostes sua Bíblia tornou-se viva. Eles herdaram de forma espiritual tudo o que haviam conhecido de forma mental. Todavia, o Espírito Santo não poderia ter feito Sua obra se eles não tivessem um fundamento na Palavra de Deus.

Será que você lembra deste fato na Bíblia? Você está lendo sua Bíblia de Gênesis a Apocalipse? Você está realmente estudando a Palavra de Deus? Seria possível dizer que a Palavra de Deus habita ricamente em você? Se sua resposta é positiva, então você possui o fundamento para a sabedoria e o entendimento espiritual.

Podemos perceber que esta era a diferença entre Jesus e os escribas. Sabemos que os escribas eram a autoridade quanto à Bíblia. Eles eram uma classe de pessoas que conhecia as Escrituras de memória. Eles sabiam de tudo que estava registrado no Antigo Testamento. Se alguém quisesse alguma explicação sobre alguma parte do Antigo Testamento, dirigia-se aos escribas, pois eles eram tidos como conhecedores das Escrituras. Quando Jesus falou às multidões, o veredito que foi dado ao Seu ensino era que Ele "ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas". O povo reconhecia os escribas como autoridades, mas também dizia que Jesus ensinava com autoridade, coisa que os escribas não faziam. Qual era a diferença entre ambos? Jesus possuía entendimento espiritual das Escrituras, enquanto os escribas tinham apenas a letra das Escrituras. O apóstolo Paulo diz: "A letra mata, mas o Espírito vivifica".

Voltemos para Gálatas 4:19, pois este versículo concentra todo o assunto que estamos abordando. Qual era o objetivo pelo qual Paulo estava se empenhando? Qual era o propósito pelo qual ele havia dado sua vida? Por que Paulo estava sofrendo? O que havia com os gálatas que estava perturbando tanto o apóstolo? Quando ele usa o termo "de novo", se refere a um fato que ocorre pela segunda vez. É como se Paulo dissesse: "Eu tive dores de parto pelo novo nascimento de vocês. Custou-me muito sofrimento e dor ver vocês realmente nascidos de novo. Era muito importante para mim ver que Cristo estava plantado em seus corações. O novo nascimento de vocês implicou em dores de parto para mim. Entretanto, agora estou tendo que passar por tudo de novo. Meu objetivo real não era apenas que Cristo estivesse em vocês, mas que Ele fosse plenamente formado em vocês. Dessa forma, Cristo cresceria em vocês e vocês cresceriam em Cristo. Mas vocês estão colocando mais ensino no lugar de Cristo, colocando a lei no lugar de Cristo e estabelecendo um sistema legal no lugar de Cristo. Tudo isso me deixa em agonia".

Apliquemos isso a nós mesmos. Se de algum modo estamos sofrendo, qual é a razão disso? Se temos inimigos que estão contra nós, tal como Paulo, qual é a razão disso? Qual é a natureza de nosso sofrimento? Será por alguma razão pessoal que nossos inimigos estão contra nós? Será que seu antagonismo se deve a alguma obra pela qual somos zelosos? Será que tudo se deve a uma posição que nos interessa manter? Estaremos sofrendo porque existem pessoas que estão contra a congregação onde nos reunimos e contra nossa maneira de andar? Será que algum desses motivos mencionados é a razão de nosso sofrimento? Peço ao Senhor que nos livre, caso a oposição contra nós venha disso.

A única razão verdadeira para qualquer sofrimento espiritual é que Cristo esteja sendo impedido de expressar-se. Isso ocorre quando vemos coisas que limitam ao Senhor. Tratam-se de coisas que desonram ao Senhor e que irão resultar em limitação espiritual. Tais coisas se opõem ao crescimento de Cristo em nós. Todo o nosso sofrimento deve ser em função do Senhor Jesus e por nenhuma outra coisa mais. "Até Cristo ser plenamente formado." Está é a última palavra que eu gostaria de deixar com vocês.

Todos nós passamos por problemas e podemos identificar a causa de boa parte deles. Contudo, gostaria de retomar nosso ponto focal: estamos sofrendo dores por causa de coisas? Ou será que estamos sofrendo pela formação plena de Cristo? O sofrimento em nossos corações está relacionado ao crescimento do Senhor Jesus? Estará tudo relacionado ao desejo de que Ele tenha a primazia que Lhe é devida? Estará tudo ligado ao propósito de que Ele seja plenamente formado em nós? Já experimentamos verdadeiramente esse tipo de dores de parto? Não se trata de dores sofridas por alguma coisa, mas dores de parto em favor de Cristo.

Se vocês estão sofrendo de alguma forma (e deveriam estar sofrendo), gostaria de perguntar-lhes: qual é o motivo do seu sofrimento? Ele é fruto de uma preocupação genuína pela honra e pela glória do Senhor Jesus? Ele é fruto do desejo que, em cada um de nossos irmãos, desde as crianças e jovens até os adultos, Cristo possa ter a Sua plenitude? Estamos sofrendo dores de parto por causa disso?

Tudo aquilo que compartilhamos está relacionado a estes contrastes: legalismo e espiritualidade, judaísmo e cristianismo, além de todas as outras diferenças que mencionamos. Todas elas apontam para esta única questão: a plena formação de Cristo em nós. Em que medida o legalismo limita o crescimento de Cristo em nós? Em que medida nossas técnicas são impedimentos ao caminho de Cristo? Todas estas coisas estão em referência a Cristo. Portanto, deixo esta questão com vocês. Ao fazer isso, a única coisa que desejo levar como certeza é que preguei a Cristo para vocês. Não estive apenas dando ensinamentos bíblicos. Também não tentei colocá-los na técnica correta da igreja. Estive mantendo Cristo sempre no primeiro plano e dizendo-lhes que o assunto de suprema importância para conosco é Cristo plenamente formado em nós.

 

FIM

 

Artigo retirado da página Águas Vivas e traduzido por Cláudio Calovi Pereira - Porto Alegre-RS

 

Em consonância com o desejo de T. Austin-Sparks de que aquilo que foi recebido de graça seja dado de graça, seus escritos não possuem copirraite. Portanto, você está livre para usá-los como desejar. Contudo, nós solicitamos que, se você desejar compartilhar escritos deste site com outros, por favor ofereça-os livremente - livres de mudanças, livres de custos e livres de direitos autorais.

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